Tuesday, August 31, 2010

A Dicotômica Educação Bancária

Em 1637 um jovem francês, ao publicar uma de suas mais famosas obras, assim se exprimia acerca da educação escolar que recebera: “Eu estava num dos mais célebres colégios da Europa, onde pensava que deveriam existir homens sábios, se eles existissem em algum lugar da Terra. Alimentei-me de letras desde minha infância, e, devido ao fato me terem persuadido de que por meio delas podia-se adquirir um conhecimento claro e seguro sobre tudo que é útil à vida, tinha extremo desejo de aprendê-las. Porém, assim que terminei todo esse curso de estudos, ao fim do qual costuma-se ser recebido na fileira dos doutores, mudei inteiramente de opinião”. No colégio onde estudara tal jovem a única língua admitida na transmissão do ensino era o latim e Cícero era o autor mais lido, sendo que a base do estudo era a lectio, ou seja, a leitura e a explicação de um texto antigo, completada por uma repetição que tinha o objetivo de afastar quaisquer dúvidas.
O mencionado depoimento, retirado de um recorte histórico em que se exigia dos homens um conhecimento abrangente e eficaz, pois, em tal período, a sociedade européia estava vivendo uma era de grandes mudanças e incertezas que atende pelo nome de Renascimento, foi aqui utilizado a título de ilustração - ainda que se deva ressalvar as grandes diferenças de contexto - do modelo de “educação bancária”, a qual se constitui na simples transferência de conteúdos e na não participação do educando na produção do conhecimento, resultando num, dentre outros, dos elementos pela falta de estímulo em estudar o que é apresentado em sala de aula. Ainda reportando-se ao supracitado exemplo do jovem francês, vê-se em suas palavras um claro flagrante de uma das características mais acentuadas pelo conceito de “educação bancária”: a falsa dicotomia homens/mundo, revelada na medida em que põe os homens como meros “espectadores e não recriadores do mundo”, nas palavras do próprio Freire. Daí o forte desejo manifestado pelo aluno francês de adquirir o “conhecimento das letras”, pois lhe inculcaram que tal conhecimento era altamente seguro a fim de que o mesmo pudesse se adaptar à realidade de seu contexto.
O espírito genuíno da “educação bancária” é o seu caráter altamente anti-dialógico, o qual reforça a contradição entre educador/educando. Assim, de maneira vertical, a concepção “bancária” de ensino “educa” para a passividade, para a acriticidade, e por isso é antagônica à educação que tem por escopo a autonomia. Deste ponto de vista e, tomando-se por exemplo a forma de ensino aplicada ao jovem francês, Paulo Freire condenará a narração e a dissertação “que implica num sujeito – o narrador – e em objetos pacientes, ouvintes – os educandos”, pois, a mesma apresenta a realidade em retalhos estáticos , sem levar em conta a experiência do educando. “Desta maneira, a educação se torna um ato de depositar, em que os educandos são os depositários e o educador o depositante”. Na visão “bancária”, e isto também pode ser constatado nas palavras do estudante de 1637, o educador é o sábio que possui o conhecimento enquanto o educando é sempre aquele que não sabe. Em suma, o educador é que educa, pensa, reflete, profere a palavra, disciplina, decide e prescreve a decisão, age, seleciona o conteúdo a ser aplicado, identifica a autoridade do saber com sua autoridade funcional, tornando-se, ao fim, o sujeito do processo. Na contramão desse movimento os educandos são educados, não sabem, são pensados, assistem docilmente, são disciplinados, seguem o que foi decidido, assumindo, assim, um papel passivo, adaptando-se às determinações do educador, tornando-se simples objetos. Dessa forma a “educação bancária” é educação que surge como prática da dominação, mantendo o educando ma ingenuidade, fazendo com que o mesmo se acomode ao mundo da opressão, permanecendo na heteronomia.
Conclui-se assim que além dos fatos relatados provocados pela “educação bancária” ela ainda surge como um dos elementos responsáveis pela desmotivação, pela falta de interesse em estudar o que é “passado” em sala de aula e, em apoio a tal assertiva, basta que se mencionem os altos índices de déficit quantitativo e qualitativo na educação, os quais constituem um obstáculo para o desenvolvimento de um país e sua emancipação. Ainda sobre tais índices é mister que se saliente que na visão de Paulo Freire o termo “evasão escolar” é ideológico, pois é empregado de modo a dar a entender que as crianças estão fora da escola por vontade própria, quando, em verdade, elas são expulsas da escola, excluídas especialmente pela “organização bancária”.

Inclusão Social: A Educação como instrumento de alcançá-la e refleti-la criticamente.

Ao se falar no tema de uma proposta de educação inclusiva é impossível não se recordar dos trabalhos de alguns importantes teóricos que se preocuparam com questões relacionadas ao advento de uma escola única, posto que por mais que se deva, em termos de ensino, levar em consideração o multiculturalismo de uma sociedade, entretanto, não parece viável que o sistema educacional esteja, pelo menos na sua totalidade, envidando esforços por sempre se adaptar cegamente a este contexto multicultural, isto por que além de trabalhar coma preparação para a vida profissional a escola tem ainda uma relevante responsabilidade que é a de preparar para a vida e o exercício da cidadania, de modo que o multiculturalismo deve entrar neste processo como um canal de abertura e compreensão da realidade, que após revelada, poderá, através da educação, ser transformada. No momento em que a escola toma por único escopo o multiculturalismo, como única e exclusiva base pedagógica, pode ela está perdendo sua imensa capacidade de interferir, como defendiam alguns teóricos, na superestrutura da sociedade. Se a mesma tomar o contexto multicultural como norte, posto que não se pode viver alijado das influências sociais, ainda mais quando essas influências ditam algo que interfere profundamente na manutenção da própria sobrevivência, que é a iniludível divisão do trabalho, poderá facilitar o processo inclusivo na escola, mas este lado da questão deve se trabalhar também o lado material e social do aluno. Isto posto a escola não deve usar como critério seletivo nenhum parâmetro econômico, étnico, cultural ou racial, pois deve ser um direito universal e aberto a todos em qualquer época ou situação de suas vidas.
A escola como algo imprescindível na formação humana, aventada a necessidade de sua obrigatoriedade e derrubadas as barreiras supracitadas no que toca ao seu acesso, deve trabalhar estratégias que despertem a consciência social e cidadã nos jovens, afim de que os mesmos sejam imbuídos da importância que tem a educação para suas vidas privadas e como veículo de transformação social, realmente incluídos não só na rede educativa, mas nos espaços de atuação e decisão na sociedade. Para tanto deve a mesma ter em seu bojo pedagógico a valorização e o respeito das múltiplas culturas, mas sem perder de vista o ensino de vias de reconhecimento dessas culturas pela sociedade como todo e o esforço de transformação social, mesmo que para isto tenha que se lutar contra supostas culturas, muitas vezes introduzidas artificialmente no meio social, como aparelhos ideológico por parte do Estado ou por setores detentores dos meios de produção desta mesma sociedade. Daí o porquê de se ter cautela em se produzir uma escola excessivamente adaptativa, pois, sem sombra de dúvida, não se pode trabalhar a educação indiferente ao multiculturalismo em que os seres humanos encontram-se inseridos, entretanto é mister que se tenha senso crítico a fim de que não se corra o risco de arrolar entre as manifestações multiculturais, certos modismos indutores e condutores de enganos e opressões sociais. Assim sendo, enquanto a educação não for totalmente despida de seu inexpugnável poder libertador das opressões sociais, será ela um prolífico instrumento de inclusão social, porém se se insistir em praticá-la única e exclusivamente como uma mera obrigação numa etapa da vida humana; se se persistir em usar sua abertura ao multiculturalismo simplesmente como meio de descrição e divulgação dessas manifestações e não como meio de inserção e valorização social das mesmas, continuará ela sendo uma reprodutora das contradições e disparidades sociais, políticas e econômicas que permeia a sociedade hodiernamente.