A Dicotômica Educação Bancária
Em 1637 um jovem francês, ao publicar uma de suas mais famosas obras, assim se exprimia acerca da educação escolar que recebera: “Eu estava num dos mais célebres colégios da Europa, onde pensava que deveriam existir homens sábios, se eles existissem em algum lugar da Terra. Alimentei-me de letras desde minha infância, e, devido ao fato me terem persuadido de que por meio delas podia-se adquirir um conhecimento claro e seguro sobre tudo que é útil à vida, tinha extremo desejo de aprendê-las. Porém, assim que terminei todo esse curso de estudos, ao fim do qual costuma-se ser recebido na fileira dos doutores, mudei inteiramente de opinião”. No colégio onde estudara tal jovem a única língua admitida na transmissão do ensino era o latim e Cícero era o autor mais lido, sendo que a base do estudo era a lectio, ou seja, a leitura e a explicação de um texto antigo, completada por uma repetição que tinha o objetivo de afastar quaisquer dúvidas.
O mencionado depoimento, retirado de um recorte histórico em que se exigia dos homens um conhecimento abrangente e eficaz, pois, em tal período, a sociedade européia estava vivendo uma era de grandes mudanças e incertezas que atende pelo nome de Renascimento, foi aqui utilizado a título de ilustração - ainda que se deva ressalvar as grandes diferenças de contexto - do modelo de “educação bancária”, a qual se constitui na simples transferência de conteúdos e na não participação do educando na produção do conhecimento, resultando num, dentre outros, dos elementos pela falta de estímulo em estudar o que é apresentado em sala de aula. Ainda reportando-se ao supracitado exemplo do jovem francês, vê-se em suas palavras um claro flagrante de uma das características mais acentuadas pelo conceito de “educação bancária”: a falsa dicotomia homens/mundo, revelada na medida em que põe os homens como meros “espectadores e não recriadores do mundo”, nas palavras do próprio Freire. Daí o forte desejo manifestado pelo aluno francês de adquirir o “conhecimento das letras”, pois lhe inculcaram que tal conhecimento era altamente seguro a fim de que o mesmo pudesse se adaptar à realidade de seu contexto.
O espírito genuíno da “educação bancária” é o seu caráter altamente anti-dialógico, o qual reforça a contradição entre educador/educando. Assim, de maneira vertical, a concepção “bancária” de ensino “educa” para a passividade, para a acriticidade, e por isso é antagônica à educação que tem por escopo a autonomia. Deste ponto de vista e, tomando-se por exemplo a forma de ensino aplicada ao jovem francês, Paulo Freire condenará a narração e a dissertação “que implica num sujeito – o narrador – e em objetos pacientes, ouvintes – os educandos”, pois, a mesma apresenta a realidade em retalhos estáticos , sem levar em conta a experiência do educando. “Desta maneira, a educação se torna um ato de depositar, em que os educandos são os depositários e o educador o depositante”. Na visão “bancária”, e isto também pode ser constatado nas palavras do estudante de 1637, o educador é o sábio que possui o conhecimento enquanto o educando é sempre aquele que não sabe. Em suma, o educador é que educa, pensa, reflete, profere a palavra, disciplina, decide e prescreve a decisão, age, seleciona o conteúdo a ser aplicado, identifica a autoridade do saber com sua autoridade funcional, tornando-se, ao fim, o sujeito do processo. Na contramão desse movimento os educandos são educados, não sabem, são pensados, assistem docilmente, são disciplinados, seguem o que foi decidido, assumindo, assim, um papel passivo, adaptando-se às determinações do educador, tornando-se simples objetos. Dessa forma a “educação bancária” é educação que surge como prática da dominação, mantendo o educando ma ingenuidade, fazendo com que o mesmo se acomode ao mundo da opressão, permanecendo na heteronomia.
Conclui-se assim que além dos fatos relatados provocados pela “educação bancária” ela ainda surge como um dos elementos responsáveis pela desmotivação, pela falta de interesse em estudar o que é “passado” em sala de aula e, em apoio a tal assertiva, basta que se mencionem os altos índices de déficit quantitativo e qualitativo na educação, os quais constituem um obstáculo para o desenvolvimento de um país e sua emancipação. Ainda sobre tais índices é mister que se saliente que na visão de Paulo Freire o termo “evasão escolar” é ideológico, pois é empregado de modo a dar a entender que as crianças estão fora da escola por vontade própria, quando, em verdade, elas são expulsas da escola, excluídas especialmente pela “organização bancária”.
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