O Domingo do Capitão
Um velho romancista do mal do século inquiria-me, num dos últimos bancos da igreja Matriz, se ainda era possível escrever uma história de amor neste século que viu as Torres Gêmeas desabarem, os mísseis caírem sobre o Iraque, e que presenciava, agora, a queda livre das Bolsas. Disse-me que tinha uma idéia há muito acalentada, entretanto, sentia-se desanimado a pegar na pena, pois pressentia que uma história de amor jamais seria lida, nos dias de hoje.
A missa concluíra-se. Seguíamos juntos pela ensolarada manhã de domingo, manhã repleta de ventos e de garotas, de notícias e de botequins. Ao fim da avenida principal o autor convidou-me a adentrar seu humilde tugúrio, estava tão só, porque não almoçávamos juntos? Hesitei durante dois minutos, tempo suficiente para transcorrer em minha mente as belíssimas ondas da praia, o contorno das falésias, o gosto refrescante da água de coco. Aceitei e entramos. Era um cubículo. Enfeitado com as mais belas cópias piratas de Van Goh e Delacroix, atapetado de estantes, daquelas antigas de pau-rosa, com as mais preciosas pérolas da literatura e uma escrivaninha Chippendale que a deferência obrigou-me a não fazer a pergunta que tanto me inquietava: “como você conseguiu este precioso móvel’? Pôs o Réquiem de Mozart para rodar e ofereceu-me limonada. Sobre a majestosa escrivaninha repousavam inúmeros manuscritos, numa desordem elegante. Eram odes, epopéias, o que me fez refletir em Fernando Pessoa, nas suas palavras que afirmavam que nossa época era maldita para a poesia porque já não se produziam epopéias. Leu-me, altissonante, um trecho que me embeveceu demasiadamente. Um ímpeto levou-me a abrir a única janela que existia no aposento. Entusiasmado o romancista falava de cá para lá sobre a história de amor que pretendia escrever”.
- Porém algo me angustia meu amigo – confessou.
- Desabafe poeta, estou aqui para isso – encorajei-o.
- O editor já foi peremptório que não publicará obra romântica alguma! Afirma que ninguém jamais se dará ao trabalho de ler uma obra romântica em pleno século XXI!...No entanto vou escrever a história, mesma que não venha a ser publicada... – concluiu passando a mão pela vasta fronte.
- Concordo plenamente com você. O artista deve sempre atender ao apelo inextinguível de sua inspiração! – falei entusiasmado.
Ergue-se e tirou de dentro de uma gaveta um calhamaço de papel que contemplou com os mais brilhantes olhos que Natureza poderiam ter-lhe ofertado.
- Eis aqui o meu filho amado! – regalou-se.
- Mas você já terminou a história, meu amigo – afirmei tomando o maço de papel em minhas mãos.
- É. Só me falta escrever o último capítulo.
-É?
- Minha grande inquietação, meu caro é como finalizar esta história. Você acha que é possível uma história de amor, ambientada no século XXI, ter um final feliz? Penso que poderia fazer deste livro um libelo pela paz, pela harmonia e pelo amor, porém penso que poderia ser diferente. Creio que poderia revelar o caráter deste século, descaradamente.
Via-se a aflição estampada na augusta face do artista. Sedimentados por anos de estudos, por experiências pessoais e por viagens, ali estavam todos os recursos que angariara pela sinuosa estrada da vida.
- Meu amigo, meu ceticismo social, apesar de cumprir todos os mandamentos da sociedade (recordava-me agora da missa que acabara de assistir), me impele a encorajar-lhe a por a face deste século no final da sua história. O artista deve ser fiel à sua musa, caro poeta. – conclui.
Por um instante, com a respiração cansada e desfalecida, de cabeça decaída, refletia profundamente no tema. Passavam-lhe pela mente todos os livros que a era moderna já produzira, tendo por pano de fundo a paz e, entretanto, o zumbido de mísseis ainda persistia no ar.
Dando um tapa na perna direita ergue-se e pôs-se a caminhar febrilmente em direção a um dos Delacroix que estampavam a parede e contemplando o motivo do quadro, decidiu-se.
- Oh este romance terá sim o final trágico dos grandes romances românticos. Quisera eu ter a pena de Goethe e poder escrever algo como as confissões de Werther, mas como sou um mero escrevinhador apaixonado procurarei por todo o clamor da Nona Sinfonia de Beethoven neste final, embora seja um reles mortal! – disse, virando-se na minha direção.
Assente isto, concordou em ir à praia comigo, talvez o mar lhe desse a trajicidade que procurava.
Entre uma água de coco e um cigarro emitia as mais belas elegias aos corpos bronzeados, elegias de saudade e de derrotas passadas! Nunca em minha vida passara uma tarde tão agradável! Parava os pescadores e pedia informações do mar, suas impressões, suas aventuras e ria e ao mesmo tempo irava-se de os pobres homens, no seu linguajar tosco, não poderem transmitir-lhe com maior precisão suas sensações.
As musas estavam, com efeito, favoráveis: conseguimos companhia para a noite e louvamos a Vênus tamanha graça!
A festa que realizamos no tugúrio do pobre poeta não se encontra em nenhuma narração de Demusset ou Hugo!
André Breton.
30/10/2008
8h 54min